8 de nov. de 2009

O outro lado de Dom Casmurro.

A pergunta que me sufoca: "Em que exato momento histórico nossa ignorância passou a ser virtude?”.

Recentemente fiz uma "pesquisa" sobre Dom Casmurro, a obra magna de Machado de Assis. Fui atrás dos assuntos picantes do romance - se Escobar, "herói" do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu (eterna e tola discussão entre beletristas), devo ter alcançado alguns desprevenidos. Bom, não apenas descobri que Escobar comeu a Capitu, como, não sei não, acho que tirei Dom Casmurro do "armário". Como não sou das maiores - e nem das menores - admiradoras do bruxo, fundador da Academia Brasileira de Letras ("a Gloria que fica, eleva, honra e consola", eta que frase, hein!), não vou discutir a maciça, inexpugnável web protecionista que se criou em torno dele. Não quero polemizar (falta-me vontade e capacidade) com a candura que erúditos (com acento no ú, por favor) tem para relação equivoca entre Capitu, a "dos olhos de ressaca" (que Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre), e Escobar, o mais intimo amigo de Bentinho, narrador e personagem do livro (evidente alter ego do próprio Machado). A desconfiança básica vem desde 1900, quando Machado publicou Dom Casmurro.
Dom Casmurro é ou não corno, palavra cujo sentido de humilhação masculina - que ainda mantém bastante de sua força nesta época de total permissividade - na época de Machado era motivo de crime passional, "justa defesa da honra", e outros desagravos permitidos pela legislação e pelos costumes.
Curioso que, ontem como hoje, o epíteto corna não se grudou à mulher. Ela é tola, vitima, “não sei como suporta isso!”, “corneia ele também!” (mais do que justo), mas o epíteto não colou.
Dom Casmurro sofre da dor especifica umas 50 paginas do romance, envenenado pela hipótese da infidelidade de Capitu. Que duvida, cara pálida? Capitu deu pra Escobar. O narrador da historia, Bentinho/Machado, só não coloca no livro o DNA do Escobar porque ainda não havia DNA. Mas fica humilhado, desesperado mesmo, à proporção que o filho cresce e mostra olhos, mãos, gestos e tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na cama). Mas, pela nossa eterna pruderie intelectual, também ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do pecado que “não ousava dizer seu nome”. Não fiz interpretações. Apenas selecionei frasesmomentos – do próprio Dom Casmurro/Machado, da Editora Nova Aguilar. Leiam, e concordem ou não.
 
Pág. 868 “Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugidios, como mãos, como os pés, como fala, como tudo.”

Mesma pagina
“Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro... Não sei o que era a minha. Mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou...” 
 
Pág. 876 “alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres.”

Pág. 883 “Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa... mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.

Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.”

Mesma pagina “Fui levá-lo à porta... Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.”

Mesma pagina “Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.

–É o Escobar, disse eu."
 
Pág. 887 “-Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração.

–Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça... Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.”

Pág. 899 “Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se não me visse desde longos meses.

-Você janta comigo, Escobar?

-Vim pra isto mesmo.”
 
Pág. 900 “Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.”

Pág. 901 “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão: um padre que estava com eles não gostou...”

Pág. 902 “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos.”
 
Pág. 913 “Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais intimas.”

Pág. 914 “A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao ouvir-lhe isto, e na total ausência  de palavras  com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.”

Págs. 925/26 Depois da morte de Escobar) “Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costas do cartão: ‘Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70’.”
 
P.S.: Mas, se vocês ainda tem duvida, leiam a página 845 do fulgido romance. Bentinho, ele próprio, fica pasmo, e realizado, quando consegue dar um beijo (quer dizer, apenas uma bicota) em Capitu. É ele próprio quem fala, entusiasmado com seu feito de bravura:

“De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

-Sou Homem!”

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